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terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Maria da Penha: uma reflexão sobre as relações sociais


Mais do que o grito das mulheres mortas, mutiladas e sufocadas pela violência, o exemplo da farmacêutica Maria da Penha, nordestina, cujo nome inspirou a Lei, deixa mensagem de reflexão sobre as relações sociais.
Em entrevista ao Midiamax, no restaurante do Novotel, em Campo Grande, Maria conta sua história de vida. Entre momentos de dor e alegria, ela deixa claro que já está na hora de crianças, profissionais, casais e amigos repensarem a forma de relação construída uns com os outros. Em que momento da emoção, o preconceito invade e torna pessoas tão próximas em adversárias, inimigos, vítimas e agressores?
Não há muros para o preconceito. Mulheres ricas, que tiveram a chance de sentar num banco de universidade e outras, semi-analfabetas, que mal sabem assinar o nome enfrentam a dor da violência psicológica e física.
Do outro lado, homens ricos, inteligentes, de boa posição, terno e gravata se vêem invadidos por raiva e revolta assim como aqueles mais humildes que chegam a casa e despejam todas sua amargura e dor na mulher, como se ela fosse um ser inferior.
Para Maria da Penha, o momento agora é de reflexão, de muita informação e de atitude, principalmente da rede de proteção que envolve os formadores de opinião, a polícia e todo o Judiciário. Leia a entrevista:
Midiamax – Como a senhora analisa essa violência que atinge as mulheres e que nada tem a ver com a condição social? Um exemplo foi o seu caso, uma pessoa que estudou, bioquímica e que foi vítima de um professor universitário.
Maria da Penha – Muitas vezes essa mulher não tem o apoio da família. Outras repensam: se eu me separar o padrão de vida dos meus filhos vai cair. Eles estão acostumados a viajar, ter academia. Elas gostam do padrão de vida.
(Pausa para conversar com a ex-coordenadora estadual de Políticas Públicas para a Mulher, Maria Rosana sobre a importância de uma capacitação aos policiais que atuam em delegacias)
Midiamax – Por que é importante capacitar esses profissionais?
Maria da Penha – É essencial. As mulheres precisam sentir-se acolhidas. Se na porta da delegacia ela não for bem acolhida, ela não acredita que pode ser ajudada.
Midiamax – Recentemente o Midiamax publicou o drama de uma jovem que apanhava do namorado e que teve que levar para delegacia a história dela para conseguir se livrar do relacionamento. Recebemos muitos e-mails de policiais dizendo que na contramão muitas mulheres vítimas de violência acabam por retirar as queixas e isso os deixa indignados.
Maria da Penha – Só quem entende o porquê que uma mulher retira a queixa é quem entende da violência. Depois da violência vem a fase da lua-de-mel, a reconciliação. A mulher acredita que não vai acontecer de novo.
Midiamax – Qual o obstáculo enfrentado depois que o caso vai parar na polícia?
Maria da Penha – No momento que o agressor já for punido, a mulher tende a querer se livrar daquele traste. E os juízes, imbuídos da cultura machista, tentam a reconciliação do casal. Na frente do juiz a mulher acaba por aceitar e se arrisca mais uma vez.
Midimax – A senhora acredita nos grupos de apoio e no tratamento para o agressor?
Maria da Penha – Vai servir para tratar o agressor para um novo relacionamento, mas não acredito em recuperação para aquela relação já com problema. Eu acho que o agressor repete o que aprendeu na infância se teve uma relação violenta quando criança. Mas, a Maria Rosana é que sabe dizer isso melhor para você. (aponta)
Midiamax – Como foi a sua vida? A senhora sofreu alguma violência quando criança? E como foram os anos de namoro com seu ex-marido que depois se tornou seu agressor?
Maria da Penha – A minha vivência é muito pessoal. Tive uma vida normal e na minha família não existiam brigas nem violência. Meu relacionamento com meu ex-marido foi maravilhoso. Ele era bem quisto, muito polido.
Midiamax – Quando ele começou a mudar?
Maria da Penha – Depois que ele conseguiu a naturalização (Ele era colombiano). Foi logo após o nascimento da nossa segunda filha. Tivemos três meninas. Eu fui usada porque para uma pessoa mudar do jeito que ele mudou só pode ser isso. Não sei como uma pessoa tão cativante muda de uma hora para outra.
Midiamax – Quais eram as atitudes dele? Isso afetou como sua vida sexual?
Maria da Penha – Passou a me culpar por tudo. Se a criança riscava assim (mostra com o dedo como se fosse um risco mínimo) a parede ele já me falava. Eu tinha que evitar que isso acontecesse. Vivia sob tensão porque não podia estimulá-lo. Não tinha como largar. Tentei me separar. Não conseguia ter mais relação sexual. Sofri agressão pesada depois do nascimento da nossa segunda filha e sempre eu tentava levar em consideração os momentos bons.
Midiamax – Com o tempo tudo isso foi acabando...
Maria da Penha – Eu não suportava mais a presença dele. Já conhecia o comportamento dele. Prevenia, procurava deixar tudo em ordem em casa. Minhas filhas eram pequenas, mas sempre sentiam proteção em mim. Hoje, as pessoas me falam: você conseguiu vencer porque suas filhas não foram prejudicadas.
Midiamax – Mesmo após o atentado que te deixou assim (cadeirante) as crianças tiveram contato com o pai?
Maria da Penha – Foi ele quem me tirou do hospital. Fiquei quatro meses internada e ainda fomos morar na mesma casa. Quando consegui me separar ele ia tentar visitar as meninas, mas eu e elas combinávamos de dar uma desculpa para ele dizíamos que tinha algum aniversário para irmos. Mas, eu dizia para elas se elas quisessem sair com o pai não tinha problema. Elas diziam que não. Meu medo maior era a gente se separar e ele fugir com minhas filhas para me prejudicar. Na minha família não existe violência.
Midiamax – Por que ele não aceitava a separação?
Maria da Penha – Embora o relacionamento não fosse bom para ele era. O meu salário era todo para dentro de casa. Eu sempre trabalhei e só ele não daria conta. Ele tinha outro relacionamento em outro estado porque ele viajava quinzenalmente para dar aula.
Midiamax – A senhora dividia sua dor com alguém? Como que houve de fato a separação?
Maria da Penha – Sim, dividia com amigas. Quando a bomba estourou e ele foi indiciado ele voltou para Natal, onde ele tinha um relacionamento. Não sei quanto tempo ele continuou. Durante o processo foi colocado que ele já tinha criado problema com outra família que ele tinha formado. Com certeza não fui a primeira nem a última.
Midiamax – A sua história deu nome à lei. Deve doer muito ter que falar disso tudo...
Maria da Penha – No Brasil não teve outra tão grave. Não gosto de falar. Talvez não falasse se não tivesse na posição que estou. A mulher não é a responsável pela violência doméstica. Mas pela cultura e lá no íntimo das pessoas há que ela fez alguma coisa para merecer isso e não é verdade.
Midimax – Quando foi o atentado e o que mais a senhora passou após isso?
Maria da Penha – Foi em 1983 e a primeira delegacia foi em 1985. A novela que passa hoje mostra uma mulher vítima de violência que reage e bate no marido. Isso é mentira jamais a mulher agredida tem coragem para agir assim. Quando eu me separei dele eu já estava paraplégica. Fiquei quatro meses hospitalizada e fui levada para casa por ele. Ele me tirou do hospital sem avisar minha família me mantendo em cárcere privado por 15 dias. Ele queria me matar. Um dia percebi o chuveiro dando choque e me apoiei no boxe e gritei pela empregada que já estava em alerta. Ai eu me lembrei que ele não tomava banho naquele banheiro e sim, no das crianças. Eu ia morrer eletrocutada.
Midiamax – Mas como ele atirou contra a senhora e não foi preso? E ainda, tirou-lhe do hospital e tentou lhe matar de novo?
Maria da Penha – Porque a versão dele à polícia é de que havia sido assaltado. Após atirar contra mim enquanto eu dormia, ele foi encontrado de pijama rasgado na cozinha com uma corda no pescoço.
Midiamax – Mas como a polícia depois descobriu a verdade?
Maria da Penha – Os vizinhos e as empregadas me ajudaram. Ele se contradisse sobre o pseudo-assalto e mudou a versão. Seis meses depois a polícia foi até a casa com a desculpa de arquivar o processo e ele foi pego de surpresa. Ai caiu em contradição porque já tinha esquecido a versão inicial.
Midiamax – Como era viver dentro da mesma casa com um homem que tentou te matar?
Maria da Penha – Ele me ignorava, era como se eu não existisse. Eu ainda estava aguardando a separação de corpos. A minha família não se aproximava de mim. A lavadeira de casa foi a casa da minha mãe e contou a ela o que estava acontecendo e minha família providenciou a separação. Mas toda a arrumação para sair de casa estava pronta sem ele saber. No cantinho do guarda-roupa estavam as roupas das crianças. Quando ele disse: segunda eu vou viajar, eu já me preparei. Ele deixou um vigia lá, mas foi ele sair e nós fomos embora com a ajuda da minha família. Depois de cinco meses após sair do hospital me livrei dele.
Maria da Penha agradeceu à entrevista e foi atender outra repórter. O deputado estadual Paulo Duarte (PT) a acompanhou e horas depois a levou para o seminário na Assembléia Legislativa, onde ela pôde falar da Lei de número 11.340 no auditório lotado, no dia 27 de novembro de 2008. Mulheres, homens, autoridades, funcionários da Casa de Leis reverenciaram Maria da Penha.

O Brasil demorou 20 anos para punir ao agressor de Maria da Penha, seu ex-marido , o colombiano naturalizado brasileiro Marco Antonio Heredia Viveros. Condenado a dois anos de prisão, cumpriu dois e foi posto em liberdade.

Ele foi preso apenas 19 anos e seis meses depois, em 2002. Em julho deste ano, passados 25 anos, o Estado brasileiro finalmente cumpre com a quase totalidade das recomendações da OEA (Organização dos Estados Americanos). Foi feito o pagamento da indenização de R$ 60 mil, pelo governo do Ceará que, na época, não puniu judicialmente o agressor. Com o dinheiro, ela quitou o financiamento de sua casa.
“Maria da Penha é um ícone da luta pela igualdade, foi privada do andar mas não da mobilidade e anda por todo o Brasil mostrando a triste verdade!”. (Trecho da homenagem de Odila Schwingel Lange/Dourados)