50 anos, meia década,
não,
eu
ainda
nem
pensava
em
existir.
Há 50 anos os militares
tomaram
o
poder,
não
de
forma
democrática, agiram com destreza, com um ressentimento passado, e aproveitaram que a elite do país estava descontente com as reformas de base do Presidente Jango pra dar o bote, deram o golpe no dia da mentira, talvez seja muito pertinente ter sido nesse dia (apesar
das
pessoas
acharem
que
foi
no
dia
31
de
março).
São esses fatos que estão sendo relembrados,
grandes
veículos
de
comunicação
que
apoiaram
o
golpe
insistem
em
fingir
que
não
tem
culpa
no
cartório...mas as marcas da ditadura militar permanecem, avenidas com nome de generais, muita gente solta “revolução” quando comenta sobre 1964, e o pior, alguns apoiam a volta dos militares no poder, ressurgindo nesse cenário a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (marcha famosa que ocorreu antes do golpe, com seus apoiadores que faziam parte da igreja católica, OAB e elite financeira do país).
Ainda temos que aguentar
representantes do Poder Legislativo, que deveriam saber ao menos da história do Brasil, colocar na plenária, em pleno 2014, uma faixa dizendo “Parabéns militares 31/março/1964 graças a vocês o Brasil não é Cuba”, ou no site da Câmara, se deparar com uma reportagem especial que trata dos “50 anos da Revolução”.
Outro fato chocante
veiculado
pelas
redes
sociais
é
um
vídeo
que
aparece
um
professor
de
direito
da
USP
afirmando
para
os
alunos
que
apoiou
a
“revolução
de
64”, que se não fossem os militares,
o
país
estaria
nas
mãos
dos
comunistas
vermelhos
totalitários.
Prevalece
o
mito
de
que
apesar
das
torturas,
censuras,
assassinatos, havia uma economia estável, o bolo crescia, todo mundo vivia bem tendo acesso aos bens de consumo, logicamente que as pessoas que viveram naquela época tem essa visão distorcida da realidade, pois a imprensa não podia noticiar que o bolo crescia sim, mas era repartido para aqueles que já eram donos do capital.
Em contraponto,
temos
discursos,
relatos
de
quem
pegou
em
armas
e
lutou
contra
a
ditadura,
a
Presidenta
Dilma
declarou
numa
solenidade
:
“Lembrar
e
contar
faz
parte
desse
processo
que
iniciamos,
de
luta
do
povo,
pela
volta
da
liberdade,
pela
anistia,
Constituinte, diretas, inclusão social, Comissão da Verdade... Por todos os processos de implantação e consolidação da nossa democracia, processo que foi construído passo a passo, por cada um dos governos eleitos depois disso”.
Um país democrático
se
faz
com
história,
os
porões
da
ditadura
estão
começando
a
serem
abertos,
a
podridão
daquela
época
evoca
responsabilidades, alguns torturadores estão sendo intimados a depor na Comissão Nacional da Verdade, uns se calam, outros falam, contam a verdade dura de ser ouvida porque tem certeza que não vão sofrer nenhuma ação penal.
É o caso do coronel
reformado
do
exército,
Paulo
Malhães,
que
disse
ao
jornal
“O
Dia”
que
participou
de
uma
operação
secreta
para
ocultar
os
restos
mortais
do
ex-deputado
Rubens
Paiva,
que
foi
torturado
até
a
morte
em
1971.
Em seu depoimento
à
Comissão
Nacional
da
Verdade
declarou:
“Matei
tantas
pessoas
quanto
foram
necessárias
(…) A tortura é um meio. Se quer saber a verdade, tem que apertar (...) naquela
época,
não
existia
DNA.
Quando
você
vai
se
desfazer
de
um
corpo,
quais
partes
podem
determinar
quem
é
a
pessoa?
Arcada
dentária
e
digitais.
Então
você
quebrava
os
dentes.
As
mãos,
cortava
daqui
para
cima”.
O Relatório Figueiredo, que há
mais de 40 anos estava supostamente desaparecido, foi reencontrado no
Museu do Índio, no Rio de Janeiro, intacto, o documento foi
elaborado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, que na época
revelou a violência sofrida pelos povos indígenas durante o período
militar, torturas, assassinatos e outras barbáries eram cometidas
pelos agentes do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), e pelos
latifundiários.
O jornal “Estado de
Minas/Correio” teve acesso com exclusividade, a um instrumento de
tortura apontado como o mais comum nos postos do SPI à época,
chamado “tronco”, é descrito da seguinte maneira: “Consistia
na trituração dos tornozelos das vítimas, colocadas entre duas
estacas enterradas juntas em um ângulo agudo. As extremidades,
ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.
Fatos horripilantes,
a
Casa
da
Morte
localizada
em
Petrópolis
continua
lá,
no
pé
da
serra,
intacta.
Os
militantes
presos
eram
levados
para
a
cidade
serrana,
sofriam
torturas
por
vários
dias,
até
a
morte
ser
convidada
para
entrar.
Uma
única
sobrevivente, Inês Etienne, ficou 96 dias na “Casa da Morte”, foi torturada, estuprada, submetida ao “soro da verdade”, tentou o suicídio duas vezes, relatou na sessão da CNV quem eram os torturadores e quem havia sido assassinado (listou nove nomes de desaparecidos políticos), disse que o torturador “Doutor Pepe” (Orlando de Souza Rangel- tenente Coronel do Centro de Informações do Exército) lhe confirmou que tinha sido responsável pela prisão de Carlos Alberto Soares de Freitas (integrante do Comando Nacional VAL-PALMARES) e que o seu grupo o executara. “Ele disse que à sua equipe não interessava em ter líderes presos e que todos os 'cabeças' seriam sumariamente mortos após interrogatório”.
Ainda, segundo
relatório
da
CNV:
“De
1964
a
1969,
a
tortura
e
as
execuções extrajudiciais de opositores políticos, na maioria das vezes, encobertas por falsas versões de suicídios, confrontos, fugas e atropelamentos. Nesse período,
os
corpos
das
vítimas
fatais
da
repressão
eram
geralmente
entregues
às
famílias
em
caixões
lacrados,
acompanhados da respectiva documentação de óbitos e laudos periciais”.
A Comissão
Nacional
da
Verdade,
foi
instituída
pela
Lei
nº
12.528/11,
que
tem
como
objetivos,
de
acordo
com
o
seu
art.
3º
:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1º;
II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;
III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1º e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995;
V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.
Pressupõe
que
o
objetivo
da
CNV
não
é
de
punir,
haja
vista
que
é
vedado
na
Constituição Federal de 1988, a implantação de um Tribunal
de
Exceção,
assim,
o
objetivo
maior
é
a
apuração
dos
fatos,
é
a
abertura
dessa
caixa
preta
que
há
tanto
tempo
ficou
fechada.
Todavia,
o
crime
de
desaparecimento forçado, segundo a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, ratificada pelo Brasil em 2011, é crime continuado ou permanente, ou seja, enquanto não se estabelece o destino ou o paradeiro da vítima sua consumação se prolonga no tempo, é também crime de “lesa-humanidade” (quando há um ato/ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil), portanto é imprescritível, bem como a tortura, segundo o Estatuto de Roma.
Nesse caso , a Lei da Anistia,
na
visão
do
Ministério
Público
Federal
não
pode ser aplicada no caso de desaparecimento forçado, uma vez que tal lei contempla a não punição de crimes cometidos durante o regime militar (se não se sabe o destino da vítima, é crime permanente, ocorreu inicialmente na ditadura, mas permanece nos dias atuais, pois perdura até hoje).
Da mesma forma, entende
o
MPF
que
os
crimes
de
tortura,
homicídio
e
ocultação
de
cadáver,
em
muitos
casos,
tiveram
origem
no
crime
de
desaparecimento forçado, e devem ser denunciados na esfera penal.
Nessa perspectiva,
o
MPF
já
denunciou
três
réus,
responsáveis por graves violações de direitos humanos na ditadura, são eles: Sebastião Curió Rodrigues de Moura, acusado de desaparecimento forçado (no tipo penal atual sequestro) na guerrilha do Araguaia, o militar Lício Augusto Macial, também acusado de sequestrar militantes opositores ao regime e o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que responde por dois processos em São Paulo.
"Os
crimes
de
sequestro
cometidos
no
contexto
de
um
ataque
sistemático
e
generalizado a uma população civil, objeto das ações penais ajuizadas pelo MPF, são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, por força de sua qualificação como crimes contra a humanidade", destaca o documento do órgão ministerial .
O MPF move também ação penal contra os responsáveis
pelo
atentado
a
bomba
no
Riocentro, ocorrido durante um show em 1981, o planejamento da ação previa a explosão da casa de força do Riocentro,
a
fim
de
causar
apagão
e
gerar
pânico
nos
espectadores, a explosão de três bombas dentro do pavilhão (provavelmente no palco), e a fabricação de provas falsas para atribuir a autoria aos grupos que lutavam contra a ditadura. O atentado foi um fracasso, tendo em vista que uma das bombas explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, matando-o.
A Lei da Anistia
(Lei
nº
6.683/79),
publicada
durante
o
regime
militar,
teve
como
escopo
a
não
punição
de
crimes
realizados
por
civis
e
militares
que
ocorreram
durante
o
período
de
chumbo,
foi
então
uma
saída
que
os
militares
encontraram
de
selar
um
acordo
de
paz
entre
os
torturados
e
os
torturadores, esconder tudo debaixo do tapete, já que a democracia esperada há tanto tempo estava prestes a ser estabelecida.
O STF, durante
o
julgamento
da
ADPF
ajuizada
pela
OAB,
em
2010,
decidiu
que
a
Lei
da
Anistia
era
válida,
que
foi
recepcionada pela Constituição Federal de 1988, assim, os militares obtiveram a guarida da justiça para continuar intocáveis, não podendo ser punidos.
A revisão
da
Lei
da
Anistia
é
uma
das
propostas
daqueles
que
defendem
a
punição
dos
militares
envolvidos
nos
crimes
de
tortura,
homicídio
e
desaparecimento forçado, outra medida possível é que a lei seja revogada, tal competência é atribuída ao Poder Legislativo, pois uma outra lei seria instituída tratando desses crimes.
A decisão
do
STF
foi
contestada
pela
Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que considerou como dever do Estado brasileiro punir crimes cometidos durante a guerrilha do Araguaia,
vejamos
uma
parte
da
decisão:
“As
disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil”.
Fazendo um estudo sobre os casos brasileiros apreciados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, verifica-se que durante o regime militar, 90% dos casos se referiam a prática de violência do aparato repressivo militar, já a partir de 1985, com a redemocratização do país, 40% dos casos denunciados estão relacionados com a violência policial.
Nas palavras de Flávia Piovesan, em sua obra “Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional”:
“Esses dados demonstram que o processo de democratização no Brasil foi incapaz de romper em absoluto com as práticas autoritárias do regime repressivo militar, apresentando como reminiscência um padrão de violência sistemática praticada pela polícia, que não consegue ser controlada pelo aparelho estatal. A transição democrática revela, assim, marcas de um continuísmo autoritário” (p. 423).
A democracia brasileira, tão jovem, prefere passar por cima desses estágios, a punição dos torturadores, assassinos da ditadura militar, seria a melhor forma de virar a página, haja vista que tal impunidade traz à tona a omissão do Estado em não conseguir punir os seus próprios agentes, portanto, esses agentes continuam agindo de forma truculenta (pois no fundo sabem que por causa do seu dever funcional são imunes aos tipos penais,
se utilizam dos “autos de resistência”).
Os resquícios da ditadura se vê no dia- a - dia com os “Amarildos” da vida desaparecidos, com a polícia espancando manifestantes, atirando bala de borracha em jornalistas, arrastando “Claudias” pelas ruas da cidade, expulsando e matando indígenas que estão nos seus “tekohas”, removendo a força comunidades inteiras por causa da Copa.
Como esquecer as marcas de um regime totalitário se o Poder Legislativo juntamente com o Executivo estão prestes a aprovar uma lei denominada “Lei Antiterrorismo”, em que as penas são mais duras que aquelas da Lei de Segurança Nacional que vigorava durante o regime militar ?
No Chile existe um museu denominado “Museu da Memória e dos Direitos Humanos”, onde a ditadura de Pinochet é lembrada de todas as formas, se lembrar é resistir, os chilenos dão de dez a zero em nós brasileiros.
Na Argentina os torturadores foram a julgamento, uma espécie da lei da anistia local foi revogada, depois considerada inconstitucional, 229 colaboradores foram condenados, e várias ações envolvendo 1.778 pessoas estão em tramitação.
Como uma vítima falou num desses diversos documentários sobre os 50 anos do golpe que estão pipocando na TV, “punir não é revanchismo, é justiça !”, e vou além, o perdão é prerrogativa de quem sofreu na pele as lesões do regime militar, e não do Estado, que continua se utilizando do seu aparato repressor a torto e a direito impunemente.
Referências bibliográficas:
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 13ª edição, São Paulo: Saraiva, 2012.
Site da Comissão Nacional da Verdade, Relatório da Casa da Morte:
“Relatório
Figueiredo que mostra o extermínio nas aldeias é encontrado”,
matéria retirada do site
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2013/04/19/interna_politica,361411/relatorio-figueiredo-que-mostra-exterminio-de-aldeias-e-encontrado.shtml
Lei 12.528/11: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm